terça-feira, 18 de agosto de 2009

Obra do acaso

Um físico explica por que as pessoas têm tanta dificuldade em compreender e aceitar o aleatório - apesar de ele controlar uma boa parte de suas vidas.

Escapando à sequência de faixas nos discos e CDs tradicionais, o iPod Shuffle oferece ao usuário a oportunidade de ouvir sua música em ordem aleatória. Em suas primeiras versões, duas canções do mesmo artista às vezes eram tocadas uma depois da outra, e acontecia até de a mesma música ser tocada duas vezes.

Repetições desse tipo são de esperar em uma série determinada pelo acaso - da mesma forma como não é impossível que o mesmo número apareça em dois lances de dados consecutivos. Os usuários do iPod, no entanto, reclamaram. Sentiram que suas músicas não eram "embaralhadas" adequadamente. A Apple, então, reprogramou o aparelho para eliminar repetições. No dizer de Steve Jobs, presidente da companhia, a função de embaralhamento passou a ser "menos aleatória, para parecer mais aleatória". O episódio ilustra bem uma incômoda particularidade do acaso: as pessoas dificilmente sabem reconhecê-lo. A mente humana foi configurada para encontrar ordem onde ela não existe - e frequentemente toma péssimas decisões com base nesses padrões imaginários.

O Andar do Bêbado (tradução de Diego Alfaro; Jorge Zahar; 264 páginas; 39 reais), do físico americano Leonard Mlodinow - parceiro de Stephen Hawking no livro Uma Nova História do Tempo -, oferece uma didática e saborosa introdução aos mecanismos do acaso - nos quais você, leitor, está inapelavelmente enredado.
Não será por acaso que um físico se dedique a escrever sobre o acaso: essa tornou-se uma linha de estudos forte na física do século XX. Um dos trabalhos pioneiros de Albert Einstein, de 1905, foi sobre as oscilações aleatórias de partículas sólidas em suspensão num fluido, o chamado movimento browniano, causado pelo movimento caótico das moléculas do líquido. O próprio Einstein, porém, não aceitou as conclusões mais radicais da mecânica quântica sobre a indeterminação dos movimentos de partículas subatômicas - daí sua famosa frase "Deus não joga dados". A física, porém, aparece apenas marginalmente no livro de Mlodinow - ele mesmo um tanto errático na carreira científica: depois de um período em universidades prestigiosas como a Caltech, em meados dos anos 80 ele tentou a sorte como roteirista em Hollywood (trabalhou na série Jornada nas Estrelas: a Nova Geração, entre outras) e, mais tarde, como programador de videogames. Hoje, está de volta à Caltech. A linha mestra do livro é a matemática, especialmente a evolução dos cálculos de probabilidade, um dos instrumentos mais poderosos que o gênio humano já inventou para iluminar o acaso - e um dos ramos da matemática que mais se mostram inacessíveis ao entendimento intuitivo. Mlodinow ilustra a deficiência com um caso que ele mesmo viveu: em 1989, seu médico lhe informou que ele tinha aids - ou, mais exatamente, que ele tinha 999 chances em 1 000 de contrair a doença, pois esse seria o nível de exatidão do exame de sangue. Na verdade, se considerasse o fato de que seu paciente não se incluía em nenhum grupo de risco, o médico teria chegado a resultados muito diferentes: nesses casos, apenas um de cada onze resultados positivos seria de pessoa realmente infectada pelo HIV. Mlodinow, de fato, fora vítima de um falso positivo. Jogos de azar, com seus resultados perfeitamente aleatórios, são um campo fértil para o estudo do acaso e da probabilidade. Um dos pioneiros nesse campo da matemática foi um italiano do século XVI chamado Gerolamo Cardano, jogador compulsivo que deixou uma obra clássica, O Livro dos Jogos de Azar. Até matemáticos inteligentes - mas com pouca experiência na jogatina - tropeçam nas probabilidades envolvidas em uma aposta. Jean Le Rond D’Alembert, matemático francês do século XVIII, examinou as chances de dar cara quando duas moedas são lançadas. D’Alembert especulou que haveria três possibilidades - zero, uma ou duas caras, cada uma delas com chances iguais de um terço. Estava errado, como explicaria Cardano. Na verdade, é preciso considerar a se-quência de resultados com ambas as moedas. As possibilidades não são três, mas quatro: cara-coroa, coroa-cara, cara-cara e coroa-coroa. Há, portanto, 50% de chance de uma cara, 25% de duas e 25% de nenhuma. O acaso absoluto é uma forma de perfeição. Programas de computador complexos são planejados para criar sequências numéricas puramente aleatórias. Mesmo um dado não viciado pode apresentar minúsculas irregularidades que favoreçam um ou outro número (ainda que sejam necessárias dezenas de milhares de lances do dado para que se descubra que números são esses). Um dos casos mais curiosos narrados por Mlodinow é o de Joseph Jagger, um engenheiro inglês que, em 1873, analisou as roletas de um cassino de Monte Carlo ao longo de seis dias em busca de irregularidades. Descobriu que uma das roletas estava, de fato, privilegiando nove números - e ficou rico apostando neles. Na verdade, foi um lance de sorte: a análise matemática mostra que a regularidade que Jagger julgou ter visto em seis dias de observação era tênue. Os nove números poderiam ter surgido por obra do acaso. A ilusão de que temos o conhecimento necessário para controlar as variáveis mais doidas do mundo cotidiano - como os números de uma roleta - provoca equívocos nas mais diversas atividades.

Em todos os esportes profissionais, o técnico de um time costuma ser responsabilizado quando amarga várias derrotas sucessivas. É comum que ele seja demitido e substituído por outro. Economistas já fizeram análises rigorosas dos resultados obtidos por equipes que mudaram de técnico e chegaram a uma conclusão que surpreende torcedores e cartolas: a mudança não faz diferença, porque, com perdão do trocadilho, há muitas outras coisas em jogo. Hollywood também nutre uma crença insensata nos poderes divinatórios de seus executivos para produzir estouros de bilheteria. Mlodinow lembra o caso de Sherry Lansing, que presidiu o estúdio Paramount ao tempo em que este lançou sucessos gigantescos como Titanic e Coração Valente - mas acabou demitida em 2004, depois de uns poucos anos de maus resultados. Os filmes que Sherry deixou no forno ao sair, como Guerra dos Mundos, voltaram a dar lucro. A preferência do espectador por este ou aquele filme (ou livro, ou novela, ou candidato político) está sujeita a tantos fatores arbitrários que ninguém sabe de fato prevê-la, argumenta Mlodinow.
O Andar do Bêbado foi publicado nos Estados Unidos em meados de 2008, pouco antes de a crise econômica mostrar suas garras. Não haveria momento mais oportuno. Os fatos confirmaram a mensagem básica de Mlodinow: os ganhos de hoje não permitem prever mais riqueza amanhã.

Um comentarista esportivo americano chamado Leonard Koppett anunciou, em 1978, um método infalível para prever, no início de cada ano, se o mercado de ações cairia ou subiria: baseava-se no vencedor do campeonato de futebol americano do ano anterior. Absurdo, sem dúvida - mas, nos dezenove anos seguintes, Koppett acertou a aposta dezoito vezes. A leitura inconsequente desses fatos sugeriria apostar em qualquer coisa - ações, dados, moedas, cavalos -, pois tudo depende apenas da sorte. A moral do livro de Mlodinow é outra. Fracasso ou sucesso estão sujeitos a forças que nenhum sistema ou indivíduo pode controlar plenamente. A consciência do acaso pode ser libertadora.


Fonte: Revista Veja

0 diagnósticos: