As conquistas essenciais para o desenvolvimento da neurocirurgia moderna foram o avanço da cirurgia geral, especialmente a anestesia e a anti-sepsia, e a teoria das localizações cerebrais1.
Morton (1819 – 1868), em 1846, introduziu a anestesia com éter e, em 1847, Simpson (1811 – 1870) introduziu o clorofórmio. Entretanto, a anestesia não resultou em aumento significativo do número de cirurgias devido ao problema da infecção pós-operatória.
Na década de 1860, Lister (1827 – 1912), usando a teoria dos germes de Pasteur (1822 – 1895), introduziu a anti-sepsia, que viria transformar a prática cirúrgica pela redução da infecção pós-operatória. Isso possibilitou o alargamento das indicações cirúrgicas, abrindo caminho para o desenvolvimento das especialidades cirúrgicas, como a neurocirurgia. Os trabalhos de Lister sobre anti-sepsia iniciaram-se em 1867, mas só se difundiram a partir de 1870.
A versão moderna da teoria das localizações cerebrais iniciou-se com Pierre Paul Broca (1824 – 1880), anatomista, cirurgião e antropólogo francês. Em 1861, ele correlacionou o fenômeno clínico da afasia de expressão com o achado patológico de lesão da porção posterior do giro frontal inferior2. Sua idéia de uma “frenologia das circunvoluções” é o conceito original das localizações cerebrais em oposição à frenologia de Gall (1758 - 1828). Mas o impacto deste conhecimento ocorreu somente a partir de 18703,4.
A observação de Broca sobre a afasia popularizou o conceito de que funções corticais específicas poderiam ser localizadas na superfície do cérebro. Esta idéia trouxe nova importância aos giros cerebrais e Broca foi um dos pioneiros a fazer descrições precisas da anatomia cortical4.
Broca foi ainda o primeiro a interpretar as perfurações nos crânios incas pré-colombianos como sendo praticadas cirurgicamente e a descrever o homem de Cro-Magnon5,6. Introduziu o conceito de lobo límbico7.
O trabalho de Broca que o liga ao desenvolvimento da neurocirurgia é pouco conhecido. São de sua autoria os trabalhos pioneiros de correlação dos sulcos e giros cerebrais com a convexidade craniana (topografia cranioencefálica) para orientar a via de acesso a determinado alvo cirúrgico8,9,10. No início da neurocirurgia esse conhecimento era de grande importância em virtude da ausência de localização das lesões intracranianas por exames de imagem. O diagnóstico anatômico, baseado em sintomas e sinais, orientava o acesso cirúrgico graças ao conhecimento da topografia das áreas funcionais do encéfalo em relação à abóbada craniana.
A partir de 1861, após a identificação do centro da linguagem articulada, Broca inicia o estudo da topografia cranioencefálica (relação das diversas partes da superficie encefálica com a abóbada craniana)8,10. Definiu e nomeou a maioria dos pontos craniométricos. Para estabelecer as relações destes pontos com os da convexidade encefálica, perfurou o crânio de cadáveres nos referidos pontos craniométricos e introduziu pelos orifícios hastes de madeira. Depois de retirada a calota, permaneciam as hastes implantadas no cérebro. Eram então medidas as distâncias que separavam as hastes dos principais sulcos e giros. Broca determinou assim a distância entre os principais sulcos e as suturas e pontos craniométricos.
Broca enunciou a importância cirúrgica potencial da afasia no sentido de localizar uma lesão intracraniana na região da porção posterior do giro frontal inferior (área de Broca). Até essa época, as intervenções sobre o crânio se resumiam ao tratamento de fraturas cranianas com afundamento ou de abscessos associados a estas fraturas. O local da intervenção sobre o crânio era indicado apenas pela lesão do osso ou dos tecidos moles que o recobrem.
Broca, em 1871, aplicou a teoria das localizações cerebrais e os dados da topografia cranioencefálica no diagnóstico de lesão intracraniana seguida de intervenção cirúrgica. Pela primeira vez, a localização de lesão intracraniana invisível foi seguida de intervenção neurocirúrgica. O paciente apresentava quadro de afasia expressiva, indicando lesão giro frontal inferior esquerdo. Sobre o crânio ele demarcou a extremidade distal deste giro em um ponto a 2 cm acima e a 5 cm atrás da apófise orbitária externa (figura 2). Através de orifício de trefina centrado neste ponto foi retirado um abscesso extradural. O paciente apresentou melhora temporária, mas faleceu poucos dias depois10.
A figura 2 mostra que a área da linguagem, como delimitada por Broca, projeta-se logo atrás da extremidade inferior da sutura coronária. Isso corresponde aos achados de Rowland11 de que o terço inferior da sutura coronária corresponde à parte triangular do giro frontal inferior, situando-se logo atrás desta sutura a parte opercular do giro frontal inferior (área de Broca; área 44 de Brodmann).
Na década de 1880, a teoria das localizações cerebrais foi associada à anti-sepsia e à anestesia, marcando o nascimento da moderna neurocirurgia.
O trabalho de Broca (1861) sobre a determinação das localizações cerebrais, foi seguido pelas observações neurológicas de Charcot (1825 – 1893), Gowers (1845 - 1915) e Jackson (1835 – 1911), especialmente quanto à representação da área motora, possibilitando o início da cirurgia de remoção dos tumores encefálicos previamente localizados pelo exame neurológico12,13.
A partir das manifestações das crises convulsivas focais, Jackson concluiu pela representação motora nos hemisférios cerebrais. Explicou a marcha da crise parcial pela difusão da energia a partir da lesão focal e deduziu que a seqüência dos movimentos involuntários indica a posição da área excitável sobre o córtex motor.
A primeira evidência experimental de localização cortical da função motora foi apresentada por Fritsch (1838 – 1891) e Hitzig (1838 – 1907) em cães, em 1870. Com a estimulação elétrica obtiveram diferentes movimentos em diferentes locais do córtex, demonstrando que diferentes áreas do cérebro têm funções diferentes.
A partir de 1873, Ferrier (1843 – 1928) iniciou os experimentos sobre a estimulação do córtex em macacos para testar as teorias de Jackson (1835 – 1911) e os resultados de Fritsch e Hitzig. Em 1876, publicou The functions of the Brain14 com estudo das localizações de funções cerebrais. Nesta obra, que teve grande impacto sobre a neurocirurgia nascente, o autor ressalta a importância da teoria das localizações cerebrais e da topografia cranioencefálica para o tratamento cirúrgico das lesões encefálicas. Assim, ele ampliou a aplicação à neurocirurgia dos conceitos de localizações cerebrais, agora com maior número de topografias funcionais conhecidas.
Macewen (1848 – 1924), em 1879, combinou o conhecimento da localização da área motora com a anti-sepsia de seu professor Lister e realizou duas craniotomias com sucesso, uma para tratar hematoma subdural e outra para tumor (meningioma)15,16. Em 1888, relatou 21 casos de abscesso cerebral, com 18 recuperações17. Ele foi, portanto, o primeiro cirurgião geral praticante da moderna neurocirurgia. Horsley, por ter devotado a maior parte de sua vida produtiva à cirurgia do sistema nervoso, é considerado como o primeiro neurocirurgião18. A obra de Cushing (1864 - 1939) nas primeiras décadas do século XX consolidou definitivamente a nova especialidade1.
Em conclusão, Broca associou os conhecimentos da localização da função da linguagem (para fazer o diagnóstico topográfico da lesão cerebral) e da topografia cranioencefálica (para delimitar o local da abertura craniana), ambos elaborados por ele mesmo, em 1861, e, em 1871, aplicou-os ao tratamento de uma lesão intracraniana. Deu assim, o primeiro passo para o nascimento da moderna neurocirurgia, merecendo o título de precursor desta especialidade.
Fonte: Sociedade Brasileira da história da Medicina
terça-feira, 22 de setembro de 2009
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